A importância de sermos Heroínas Negras

Raena Lamont (3) fantasiada de Capitã América em Nova Iorque (2012). (via Superheroes are for girls, too!)

"se todas as crianças vêem crianças brancas como centro das histórias, que tipo de mensagem está sendo transmitida a elas?"  

Qual a sua personagem Negra animada (cartoon e videogames) favorita?
Acredito que a pergunta-chave sobre Representação é "Quem você quer ser?". Essa resposta é sempre permeada de valores sociais, físicos e psicológicos que uma criança (e mesmo quando crescemos) reconhece como positivos. Aliás, eu não diria "positivos", mas proporcionais à dialética eu-mundo (o que dizem ser bom/legal e o que queremos/acreditamos/somos) e com as possibilidades oferecidas.

Essas possibilidades são as personagens que aparecem nos jogos, nos desenhos animados e em qualquer outro produto da Cultura de Massa. Primeiro analisamos se há personagens que fogem ao padrão, mas não é suficiente ter negras/os, gorda/o, cigana/o se a forma como essa/e personagem aparece faz você ter raiva. Um clássico exemplo de representação do que crianças normalmente não querem ser é o indígena no desenho Capitão Planeta: ele está associado ao amor (simbolizado pelo coração).

Num contexto de luta por "ideais" de justiça, as demais raças se mostram ativas no embate ao fazerem uso de elementos naturais: terra, fogo, água, vento... e o índio é a passividade do amor. Óbvio que esse "não querer ser", vem dum ódio aos valores que são associado ao feminino e às mulheres, mas é impossível separar opressões, elas são como tramas. Podemos enumerar uma série de outras animações que trazem essa mensagem sutil sobre o que é bom ser ou não e, na maioria das vezes, meninas Negras não têm com quem se identificar... ainda mais se são pobres & gordas & LGBTQ. Funciona assim:


É curioso que, no início do filme, há diversidade de gênero e de raça (este por considerarmos que o padrão brasileiro é basicamente definido por cor). Essa sequência tem tanto a camada literal que é, as 1) pessoas não-brancas adentrarem uma sala inteligentemente mortífera quanto a metafórica 2) normatização que, como lasers, podem mutilar. O interessante dessa passagem é que o primeiro a morrer é mais próximo à norma e apenas uma faixa o atinge; o homem preto resiste tanto que apenas a rede múltipla (simboliza a interseção) incide mortalmente. Alguma criança quer ser esse personagem? Por mais angustiante que seja para a protagonista assistir impotente a morte de sua equipe, ela está viva, ela que tem uma história pra contar.

Normalmente, nas narrativas com múltiplos protagonistas, se a personagem é mulher, ou ela é caucasiana/branca ou amarela/asiática. Negritude, gênero, sexualidade, idade, corporalidade e classe raramente convergem e sabemos o porquê.

Ser forte
Pessoas sempre fogem aos padrões estabelecidos em algum grau e as crianças têm plena noção disso. Além de já terem coordenadas sobre sua identidade e sobre como as pessoas tratam seus "desvios," interesses e escolhas, as crianças estão numa posição de vulnerabilidade (por serem pequenas, dependentes e recém-introduzidas às lógicas do mundo) de modo que precisam sentir que são fortes.

Elas precisam sentir de alguma maneira, e as narrativas são essenciais tanto para sublimar como como para formar o padrão do que desejam ser. No livro "Brincando de Matar Monstros" [1] temos uma lista exaustiva de depoimento de crianças e adolescentes sobre a relação que têm com a violência ficcional. Surpreendentemente elas/eles têm plena consciência de suas emoções reprimidas e da necessidade de descobrir seu poder pessoal. (JONES, 2003, p.6). Uma criança disse ao autor:

Quando estou lendo
sobre eles,
eu sou eles, certo?
Então...
eu me sinto
poderosa

(in JONES, 2003, p.6)

Quando criança, algumas perguntas invadiam minha diversão-Disney: por que o mal costuma ter cabelo preto e pele escura? Por que não um filme sobre o Tio Scar ou o mago Jafar? O mal é mau mesmo? Embora eu não tivesse respostas, era importante escolher uma heroína pra ser e representar o que eu achava que deveria atingir: ser forte, agir em grupo, construir laços reais, me divertir e ser feliz.

Quando conheci o Tumblr sobre crianças fantasiadas de heroínas, fiquei surpresa com a fusão que elas faziam; meio-hulk/meio princesa, um personagem masculino numa versão feminina e uma série de outras mudanças que eram impensáveis na minha infância. O gênero era uma barreira (naturalizada inclusive) para a escolha performativa assim como a raça/cor. Todas essas reflexões vieram a tona há uns dias atrás numa espécie de brincadeira no twitter.

Negras em animações
A hashtag #animatedblackgirls cavou na memória de muita gente que usa Twitter aquelas poucas personagens Negras que existiram na infância dos anos 1990/2000 e que gostaríamos de ser. Escrevi, no início desse ano, um texto chamado Sobre equiparar ao que não existe que, dentre outros pontos, passa pela infância Preta & nerd num mundo que gerava ansiedade sempre que eu ia buscar uma personagem Negra para me identificar, representar e querer ser. Pra mim, não estar nos jogos, nos filmes, nos desenhos e tudo o mais que fazia parte da minha diversão era um constante apagamento da existência real:

Ainda naquela fase, adorava desenhos animados, seriados de vampiros e videogame. Mesmo sem saber elaborar exatamente a percepção dos padrões, eu sabia que, naquele universo, ou eu morreria primeiro, ou eu não existia mesmo, afinal, eu não era (e nem queria ser) um menino; não tinha (nem tenho) cabelos lisos e longos; não era (nem sou) uma anciã; por fim, eu não me identificava com aquele aspecto da África generalizante e paradisíaca que perpassava as duas únicas heroínas Negras que, àquela época, povoavam meu universo interno: Tempestade (X-Men) e Diana (Caverna do Dragão). Uma vez que não encarnavam e não ofereciam soluções diegéticas (dentro da história) para as minhas questões e as outras eram o que não sou, mais uma vez, eu era a incógnita inexistente.

Eu observava que os meus primos, todos eles negros, conseguiam se identificar com qualquer personagem e que não parecia haver problema nisso. Eles não precisavam ser homens negros, mas eu precisava ser uma mulher E sou Negra. Assim, mais do que desigual, eu pertencia a uma categoria do que não se fala, do que não tem nome. Eu era ___________?

QUIANGALA, Anne Caroline. Sobre equiparar ao que não existe.

Catarse
As narrativas nas mídias de massa e nos jogos de RPG sempre foram meus centros de interesse desde a infância, porém, as respostas sobre como e por que só foram elaboradas nos primeiros meses da graduação. Minha orientadora de Iniciação Científica sugeriu que eu lesse e fichasse o (já citado) Brincando de matar monstros. Compartilho com vocês uma passagem que explica bastante uma infância fantástica:

Assistir televisão e brincar fazem parte de um mesmo processo: " a catarse exige que as emoções sejam estimuladas, antes de serem liberadas. O simples fato de assistir a um filme geralmente não provoca a liberação de tensão ou de raiva, mas, diversas vezes, eu vi crianças extremamente animadas após assistirem a um episódio de Pokémon, a ponto de pular do sofá e repetir as cenas fisicamente, até ficarem cansadas e relaxadas

(JONES, 2003, p.44)

Pois é, crianças precisam imaginar, brincar, representar e se sentir que existem em todas as potencialidades. Precisam sentir força e emoções que nem sempre a vida cotidiana lhes oferece. Essa absorção do que falta nelas possibilita expressar e aprender valores nobres e de autoconfiança. É gratificante ver mudanças tão drásticas em termos de possibilidades narrativas para meninas Negras. Hoje em dia elas sabem (e não apenas por si mesmas e suas famílias) que podem ser o que elas quiserem, não apenas Diana ou Tempestade:






Referência:
JONES, G. Brincando de matar monstros: porque as crianças precisam de fantasia, videogames e violência de faz-de-conta. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003.
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